Paralelos entre a crise de 2008 e a Crise da Companhia do Mississippi

Lucas Said
6 min readMay 9, 2020

Mark Twain, que cunhou a frase, “A história nunca se repete, mas rima”, esperava que eventos históricos nunca fossem exatamente iguais, mas que fossem, em essência, parecidos. E ele não poderia estar mais certo, principalmente se tratando em como os Estados gostam de insistirem nos erros cometidos pelos governos de outrora.

É impressionante, por exemplo, as similaridades da bolha imobiliária de 2008 com a crise da Companhia do Mississippi. Gosto principalmente da descrição da Crise do Mississippi que Yuval Noah Harari faz em seu livro, Sapiens: Uma Breve História da Humanidade. A descrição da crise é feita com uma simplicidade que qualquer um possa entender e por isso vou replica-la abaixo.

“Em 1717, a Companhia do Mississippi, fundada na França, tratou de colonizar o vale do baixo Mississippi, fundando a cidade de Nova Orleans no processo. Para financiar seus planos ambiciosos, a empresa, que tinha boas relações na corte do rei Luís XV, vendeu ações na bolsa de valores de Paris. John Law, o diretor da empresa, era também presidente do Banco Central da França. Além disso, o rei o havia nomeado controlador-geral de finanças, um cargo mais ou menos equivalente ao de um ministro de Finanças em nossos dias. Em 1717, o vale do baixo Mississippi oferecia poucas atrações além de pântanos e crocodilos, mas a Companhia do Mississippi espalhou histórias de riquezas fabulosas e oportunidades infinitas. Aristocratas, homens de negócios e membros apáticos da burguesia urbana da França foram atraídos por essas fantasias, e os preços das ações da Companhia do Mississippi dispararam. No início, as ações eram oferecidas a 500 Libras. Em 1 de agosto de 1719, eram vendidas a 2,75 mil Libras. Em 30 de agosto, valiam 4,1 mil Libras e, em 4 de setembro, chegaram a 5 mil Libras. Em 2 de dezembro, o preço de uma ação da Mississippi ultrapassou os 10 mil Libras. A euforia tomou conta das ruas de Paris. As pessoas venderam todos os seus bens e contraíram grandes empréstimos para comprar ações da Companhia do Mississippi. Todos pensavam ter descoberto o caminho fácil para a riqueza.”

Nesse ponto vale uma pausa para traçar um paralelo entre a euforia dos imóveis nos EUA antes de estourar a crise, e a Companhia do Mississippi. Em ambos os casos as pessoas se endividavam muito mais do que eram capazes de pagar. Uma comprando diversos imóveis sem precisar nem mesmo comprovar renda e outra comprando ações baseados em boatos de uma riqueza fácil e sem grandes dificuldades. As casas nos EUA antes de 2008 eram vendidas para um especulador, que então revendia para outra pessoa, que na verdade também era um especulador e que gostaria de obter um lucro na revenda, e assim, de novo e de novo, o processo se repetia por mais vezes enquanto a bolha não estourava. Na verdade poucas casas eram realmente vendidas para serem usadas como moradia, e o que mantinha a roda girando eram especuladores vendendo para especuladores. Uma única pessoa podia comprar inúmeras casas e quando conseguia vender uma ia pagando as parcelas das casas restantes com o dinheiro obtido.

Na verdade esse processo não seria errado se a avaliação de risco fosse corretamente sinalizada pelos Bancos e pelas classificadoras de risco, avaliação que, claro, não ocorreu.
Continuando a história da Companhia do Mississippi, Harari diz:

“Poucos dias depois, o pânico começou. Alguns especuladores perceberam que os preços das ações eram totalmente irrealistas e insustentáveis. Concluíram que era melhor vender enquanto os preços estavam no pico. À medida que a oferta de ações disponíveis aumentou, os preços caíram. Quando outros investidores viram o preço caindo, também quiseram vender depressa. Com isso,os preços despencaram ainda mais, desencadeando uma avalanche. Para estabilizar os preços, o Banco Central da França — presidido por seu diretor, John Law — comprou ações da Companhia do Mississippi, mas não poderia fazer isso para sempre. O banco acabou ficando sem dinheiro. Quando isso aconteceu, o controlador-geral de finanças, o mesmo John Law, autorizou a impressão de mais dinheiro a fim de comprar mais ações. Isso colocou todo o sistema financeiro da França dentro da bolha. E nem mesmo essa mágica financeira foi capaz de salvar o dia. O preço das ações da Companhia do Mississippi caiu de 10 mil Libras para 1 mil Libras outra vez, e então despencou completamente, e as ações perderam cada centavo de seu valor. A essa altura, o Banco Central e o Tesouro Real tinham uma quantidade absurda de ações sem valor e não tinham dinheiro algum. Os grandes especuladores saíram praticamente ilesos — eles venderam a tempo. Os pequenos investidores perderam tudo, e muitos cometeram suicídio.”

Aqui vemos o mesmo comportamento de Bancos Centrais separados por um período de 300 anos. Da mesma forma que o Banco Central Francês imprimiu dinheiro para comprar ações da Companhia do Mississippi, Bancos Centrais do mundo todo durante e após a crise de 2008 também imprimiram dinheiro para comprarem ações, hipotecas, dividas de bancos e empresas. É simplesmente impressionante a quantidade de dinheiro que foi criado entre 2008 e 2015 nos EUA e no resto do mundo. Da mesma forma que todo o sistema financeiro Francês da época ficou inserido na bolha do Mississippi, talvez hoje todos os Bancos Centrais do mundo estejam também inseridos em uma bolha muito maior. E da mesma forma que o governo Francês possuía uma quantidade absurda de ações sem valor da companhia do Mississippi, talvez os EUA possuam uma quantidade absurda de hipotecas sem valor.

Crescimento da Base Monetária Norte Americana

Harari continua:

“A Bolha do Mississippi foi uma das crises financeiras mais espetaculares da história. O sistema financeiro da coroa francesa jamais se recuperou totalmente desse golpe. A maneira como a Companhia do Mississippi usou seu poder político para manipular os preços das ações e alimentar a febre de compra levou o público a perder a fé no sistema bancário da França e na sabedoria financeira do rei francês. Luís XV teve cada vez mais dificuldade de obter crédito. Esse veio a ser um dos principais motivos pelos quais o império ultramarino francês caiu nas mãos dos britânicos. Enquanto os britânicos conseguiam obter empréstimos facilmente e a juros baixos, a França enfrentava dificuldade para conseguir empréstimos e tinha de pagar juros altos por eles. Até que, nos anos 1780, Luís XVI, que havia subido ao trono após a morte do avô, percebeu que metade de seu orçamento anual estava comprometida com o pagamento de juros sobre os empréstimos e que seu destino era a bancarrota. Com relutância, em 1789, Luís XVI convocou os Estados-Gerais — o parlamento francês que não se reunia há um século e meio — a fim de encontrar uma solução para a crise. Assim começou a Revolução Francesa.”

E mais coincidências ainda podem ser observadas nas consequências entre as crises. Até hoje os bancos centrais ainda não se recuperaram da crise de 2008, e provavelmente nunca irão. O balanço do FED é imenso. As taxas de juros estão hoje próximas de zero ou negativas. Pode ser que esse erro dos EUA seja fatal para sua liderança global na economia. A China já era uma ameaça perturbadora para os Americanos em todos os sentidos, e agora, com a economia global tão vulnerável, pode ser que alguém tire vantagem dessa crise.

Ambas as crises foram claramente criadas por fraudes com participação ativa nos governos vigentes e parece que casa vez mais estamos perdendo nossa fé no sistema financeiro Global. Tanto é verdade que hoje temos iniciativas como o Bitcoin e Ethereum que vieram justamente por insatisfação na forma como os governos lidam com a moeda. E é claro que outro movimento que ganha força com os erros do Governo são os Liberais, e quem sabe um dia voltem a ser um grupo com ideias amplamente compreendidas e defendidas.

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